Ilustração: Carlos Alonso
Cultura Gaúcha, por Letícia Garcia
Martín Fierro é um gaúcho conhecido. Passeia pelo imaginário da população pampiana há 144 anos, com seu chapéu e seu cavalo, suas questões à ponta da espada, suas guerras não escolhidas e injustiças duramente enfrentadas. Criação do argentino José Hernández, que foi soldado, jornalista e político, o livro foi traduzido para diversos idiomas, com mais de uma edição para o português. A temática campeira e o tom de denúncia social sobre a situação do gaúcho histórico tornaram-no um clássico da literatura gauchesca. Para procurar entender a obra e seu contexto de criação, conversei com Demétrio Xavier, um entusiasta da obra-prima de Hernández, músico vencedor da Califórnia da Canção Nativa de Uruguaiana de 2009, especializado na obra de Atahualpa Yupanqui e radialista responsável pelo programa Cantos do Sul da Terra, da FM Cultura.
O “Martín Fierro” encontrado hoje é formado por dois livros: “El Gaucho Martín Fierro”, lançado em 1872 (popularmente conhecido como “A Ida”), e “La Vuelta de Martín Fierro”, de 1879. É possível olhar para a obra de Hernández por dois ângulos, observa Demétrio Xavier: um deles é o da literatura romântica, da saga do anti-herói contada pela bela poesia que imita o formato da tradicional declamação improvisada chamada payada; outro é o da reconstrução histórica da população gaúcha. Por este segundo olhar, Demétrio explica que os sete anos que separam as publicações também se distanciam em clima político. “Historicamente, o primeiro livro é uma denúncia feita por um jornalista que viria a ter uma atuação política, um homem culto e urbano daquela segunda metade do séc. XIX que estava testemunhando uma estratégia de extermínio”. Na época, o governo argentino procurava “civilizar” a campanha através da redução do número de gaúchos e índios. Para isso, promovia o massacre mútuo, enviando gaúchos (como na época eram chamados aqueles marginalizados, sem posses ou terras) à “fronteira” com as terras indígenas para lutar contra os guerreiros nativos. Martín Fierro é um desses gaúchos convocados para a luta, e passa por toda a sorte de infortúnios. “’El Gaucho Martín Fierro’ começa a ser escrito por um cara que está exilado em Santana do Livramento/RS pelo presidente que mais lutou por este ‘civilizar’ violentamente as campanhas argentinas, que é Domingo Faustino Sarmiento. Este livro é lançado na intenção de denunciar o que estava sendo feito com aqueles homens e mulheres mestiços que viviam naquelas regiões: a estratégia de desaparecimento para com os gaúchos e também a falta absoluta de direitos que eles tinham”, explica Demétrio.
IDA E VOLTA
O livro foi um sucesso, um best seller da época – considerando que a maior parte da população interiorana era analfabeta. Era vendido em armazéns e bares, feito com papel simples e compartilhado no boca a boca entre a população, já que tinha o formato da payada. Em 1879, quando Sarmiento já não estava no poder e o governo de Nicolás Avellaneda trazia estratégias mais conciliadoras para com a população gaucha, Hernández lançou “A Volta”. “A gente nota que este tom muda um pouco. A saga deste cara, já maduro, também acompanha o amadurecimento de Hernández e o amadurecimento, se é que se pode chamar assim, da contradição política dentro da Argentina”, observa Xavier. “Este é um livro fundador, fundamental da literatura no continente, e tem essa coincidência maravilhosa de ser escrito por um argentino, na fronteira do Rio Grande do Sul com o Uruguai, sobre o tipo que os três países compartilham: o gaúcho.”
LITERATURA DE FORMAÇÃO
“Martín Fierro” foi abraçado por urbanos que lutavam politicamente, em defesa do argumento “o nosso povo gaúcho”. O processo de apropriação do gaúcho e de sua mitificação como figura nobre para o pampa já iniciou naquele período. Aqui no Brasil, com obras como “O Gaúcho” (1870), de José de Alencar – “que é avacalhado até não poder mais por pessoas do Rio Grande do Sul que conhecem os hábitos e percebem uma enorme quantidade de erros que ele comete, mas que é um grande escritor e acaba ajudando a sustentar este mito”, pontua Demétrio –, e “O Vaqueano” (1872), de Apolinário Porto Alegre, no Partenon Literário. Uma representação mais crítica do gaúcho vai aparecer perto da metade do séc. XX, com autores como Alcides Maya, Ivan Pedro Martins e Cyro Martins e seu “gaúcho a pé”, que trouxeram a realidade do proletário gaúcho e rural – incluindo, sim, a carga simbólica e os hábitos tradicionais da zona pastoril, mas também a pobreza, a exclusão, a expulsão do campo. “Seja como for, os momentos mais fortes em que essa apropriação acontece são aqueles em que a política enseja isso – no RS, a gente tem aquele florescimento de um tradicionalismo na década de 40/50, que vai buscar todas essas referências”, conta Xavier.
SER GAÚCHO
Essa escrita sobre o gaúcho, define Demétrio, faz parte da busca por uma essência própria. Em uma América de conquistadores e conquistados, a figura do gaúcho seria uma terceira via, mestiço como o é o povo americano. “Não é o conquistador que chegou passando o rodo, nem o indígena que sofreu toda a classe de violência, nem o negro, sendo as três coisas. É uma maneira de construir um personagem ‘digno’, pretensamente livre da violência daquela contradição”, resume. As referências culturais e históricas, também na literatura, contribuem para essa formação. “A esquerda vai construí-lo dizendo ‘sim, nosso povo é esse, é feito disso, esse pária, esse despossuído’, e a direita vai construí-lo dizendo ‘sim, nosso herói é este homem de bronze inquebrantável’. De qualquer maneira, ele purga a violência da conquista da América, em alguma medida. Acho que isso explica a vigência dessa coisa de ‘ser gaúcho’, de gauchismo. Isso não termina nunca”, resume. A importância de Martín Fierro atravessa gerações, sendo, inclusive, referência para criações de autores como Jorge Luis Borges. “’Martín Fierro’ é, e sempre será, um dos principais livros da história da literatura do continente”, conclui Demétrio.
Imagem: Divulgação Letra & Vida
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